sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Nietzsche e a dança.


O objetivo desse post é modesto, ainda que, possivelmente, de considerável pertinência: trata-se de situar a noção de dança nos escritos de Nietzsche, mais especificamente, em seu Zaratustra. Isso porque sabemos da importância que o filósofo conferiu à dança nessa obra, identificando o homem de “espírito livre” como “aquele que dança”. No entanto, é necessário que se situe, com recortes da ética e da estética, a configuração desse termo “dança” para que, com isso, não sejamos levados a tomar a acepção usual moderna da palavra como matriz explicativa para o conceito realmente presente na filosofia nietzschiana.
            Para isso, é preciso que se compreenda que Nietzsche elege a dança com base em um referencial helenístico, fundamentalmente inserido no que se chamavam cultos dionisíacos. A estética da dança, para Nietzsche, está compreendida em um referencial antagônico aos modelos apolíneos que fundamentaram o nascimento da tragédia e, desse modo, podemos afirmar que a dança como modelo baseada no virtuosismo técnico e coreográfico, muitas vezes presente no cenário atual, é fundamentalmente diferente da alegoria nietzschiana. As premissas elementares dessa afirmação é o que se encontrará nos parágrafos seguintes.
            Estando o objetivo desse texto circunscrito ao conceito de dança em Nietzsche, muitos outros conceitos importantes do filósofo, relacionados inclusive com o universo do corpo, são apenas anunciados em sua formulação mais evidente, servindo de fundamento para análise, mas não objeto da própria análise, o que seria tarefa profícua, mas transcenderia os interesses presentes. Ao situar o conceito de dança em Nietzsche no seu panorama teórico adequado pensamos contribuir tanto para um saber filosófico, concernente à justa adequação dos modelos explicativos aos seus fundamentos, como, também, para o universo de estudo do corpo e da Educação Física que, ao se utilizarem do conceito em questão, fundamentem-se pela escolha certa das premissas.
Nietzsche e a dança
            A obra prima do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) é, sem dúvida, o livro “Assim falou Zaratustra”, produzido entre os anos de 1833 e 1885. Como escrito fundamental de seu pensamento, encontram-se nele os referenciais fundamentais de sua filosofia: a vontade de poder como essência da vida, a crítica à racionalidade, o eterno-retorno, o super-homem, o apolíneo e o dionisíaco. De modo alegórico, a dança aparece como uma importante metáfora nas andanças do personagem central da obra, Zaratustra. Mas qual é o sentido dessa metáfora, ou de modo ainda mais circunscrito, o que essas metáforas podem trazer de interessante para o pensar sobre a dança?
            Para responder a essas perguntas trata-se de realizar o caminho inverso da metáfora nietzschiana, ou seja, se no Zaratustra a dança aparece como um suporte para o desenvolvimento de certa reflexão filosófica, nossa tarefa é a de partir dessa reflexão expressa por Nietzsche conduzindo-a para o fenômeno particular da dança. O que queremos, em uma imagem simples, é um movimento espiral tal qual o de um rodamoinho de vento que, circularmente, ascenderia, captaria outros saberes e os depositaria novamente no solo. Assim, dança e filosofia devem revelar traços comuns, intersecções, formas similares de se situar perante a vida. É justamente esse posicionamento perante a vida que move Zaratustra em suas andanças. Caminhando de cidade em cidade, de povoado em povoado, Zaratustra conhece o ser humano e profere discursos sobre esse ser à luz do seu projeto que é tanto o de identificar quem é o homem, como o de propor um “além do homem” (übermensch).
            Esse homem que Zaratustra encontra não está pronto, é mutável em sua essência. A natureza do homem é, então, metamorfosear-se. Para Nietzsche, são três essas possíveis metamorfoses, e é com essa percepção que o primeiro discurso de Zaratustra é proferido (NIETZSCHE, 2005, pp. 51-53). Primeiramente o homem conhece o espírito do camelo, aquele que trabalha, que suporta grandes cargas, que obedece o “tu deves” como sua orientação de vida. Para esse espírito, nenhum esforço é demasiado e o homem que é dotado de tal energia não sucumbe facilmente às dificuldades que a realidade lhe impõe. No entanto, há um espírito ainda mais forte, um espírito que está além do esforço em cumprir tarefas, de carregar fardos, trata-se de um espírito que tem em si o poder, a onipresença, a capacidade de se impor. Esse é o espírito do leão. Forte em sua essência, tranqüilo em sua presença, absoluto em sua dominação. O leão é expressão do “eu quero”. Mas resta ainda ao homem a possibilidade de uma terceira metamorfose. O espírito humano pode ir ainda mais além da resistência do camelo ou da força do leão: ele pode assumir o espírito da criança. O mais poderoso dos espíritos é aquele que tem em si a criança e isso significa, fundamentalmente, a capacidade de ser livre, de brincar com a vida, de esquecer ativamente e de amar a existência.
            Em suma, o espírito da criança é um grande “sim” à vida. Essa posição da filosofia de Nietzsche, que encontra fundamento, em parte, na influência que Schopenhauer teve sobre seu pensamento, é conhecida por “vitalismo”. Tanto em Schopenhauer como em Nietzsche o vitalismo é uma filosofia de inclinação radical à vida. No caso da metáfora do primeiro discurso de Zaratustra, o espírito da criança compreende esse amor e, assim, trata do homem que tem vontade. A vontade, como categoria filosófica, é essencial no sistema de pensamento de Schopenhauer, que define o sentido da vida como o da “vontade de viver” e, em Nietzsche, também é fundamental, na condição de “vontade de poder”.
            Brincar com a realidade, dizer sim à vida, mover-se como um ser de vontade. Esses são os primeiros passos, ou o pano de fundo para se compreender o porquê da escolha de Nietzsche pela metáfora da dança. A dança parece querer essa leveza ou ligeireza. A agilidade do dançarino é o suporte da vida vivida com o espírito da criança. A dança que Nietzsche enxerga é aquela que não tem códigos determinando sua ação, mas, ao contrário, ela é a própria desintegradora dos códigos, dos lugares-comuns, da normalidade.
            Desde suas primeiras obras Nietzsche percebe o papel transformador da arte. Em um mundo dominado pela fraqueza moral, na qual os homens se submetem ao medo e, assim, renunciam à vida, a arte aparece como representante de um poder vital. A dinâmica da arte é capaz de reintegrar o homem à vida, devolvendo a energia que a submissão lhe roubara. Essa forma de entender a arte é fundamentalmente antagônica àquela que se desenvolve após o advento da tragédia no cenário grego dos séculos V e IV a.C. Fundamentando um novo formato para o teatro, no qual nota-se a presença do solista, do coro ensaiado, dos recursos cênicos não espontâneos o teatro vai se configurando, na opinião de Nietzsche (2003), em uma forma institucionalizada de se conduzir as emoções e de se obliterar o papel dionisíaco da arte. Para que arte seja de fato vital e ofereça ao indivíduo uma experiência única e totalizante sobre a vida ela deve ter a energia anterior ao do regramento trágico, ela deve ser, em suma, dionisíaca.
            Os cultos dionisíacos estão, certamente, entre as manifestações mais efusivas da cultura helenística. Em homenagem ao deus do vinho, clamando-se por sua fertilidade, os cortejos eram levados ao êxtase entusiástico conduzidos, sobretudo, pelo vinho e pela dança. A dedicação de Nietzsche ao resgate dos valores pré-socráticos da cultura grega, em especial, do dionisismo, levou-o, assim, à valorização da dança. Pois então há de se compreender que essa dança, que Nietzsche nos apresenta como enérgica, visceral, destruidora, é uma dança dionisíaca, uma expressão de êxtase e entusiasmo do corpo com a música, com o divino e com o outro. Vejamos, brevemente, cada uma dessas relações em separado para, assim, tecermos mais algumas reflexões sobre a dança a partir das imagens de Nietzsche.
A dança e a música
            A música exerce, na filosofia de Nietzsche, um papel fundamental. Desde sua aproximação de Wagner até o rompimento de sua relação com o compositor, sempre esteve presente a convicção do filósofo alemão sobre o papel educativo central da música. Tal papel educativo não se circunscreve à educação formal e seus métodos, Nietzsche vê na música uma função educativa muito mais ampla, que tem a capacidade de conduzir a humanidade a uma esfera superior de sua relação com a vida, desequilibrando as obviedades pela “comovedora violência do som” (2003, p. 34). A teoria estética de Nietzsche sobre o mundo grego é baseada na divisão de forças entre dois grandes modelos, representados pelo apolíneo e pelo dionisíaco. Apolo, deus solar, é o representante estético da harmonia, das formas exatas, da ordem e da beleza equilibrada. Dioniso, deus do vinho e da metamorfose representa os excessos, o poder do caos, do entusiasmo e da energia. A arte apolínea, por excelência, é a escultura ao passo que arte dionisíaca é a música. No entanto, notemos que, por essa origem ritualística que embasa a reflexão de Nietzsche, a dança e a música formam uma unidade e é assim que devemos entender, portanto, as menções posteriores que o filósofo fará à dança. Esse cuidado nos alerta que, se tomarmos como referencial certos modelos atuais para compreender a dança estaremos escolhendo algo fundamentalmente diferente daquilo que deu substância ao pensamento nietzschiano. Nas festas dionisíacas, música e dança são uma unidade, não há estética contemplativa (que é apolínea e trágica), mas uma atividade, no sentido de uma participação ou entrega do indivíduo ao contexto.
            A dança esquadrinhada, técnica, conduzida ao passo e à previsibilidade coreográfica nada tem em comum com a espontaneidade do culto dionisíaco. A dança que Zarathustra pode nos oferecer, portanto, não é da ordem do modelo, da técnica ou da norma, mas sim a do improviso, da embriaguez e da fruição. Segundo Nietzsche (2007, p. 82) a obra “Assim falou Zaratustra” pode ser entendida, ela própria, “inteiramente como música”.
A dança e o divino
            As práticas corporais na Grécia antiga, muitas vezes, são mal interpretadas quando colocadas sob a lente da interpretação contemporânea. Isso porque somos levados a crer que tais práticas possuíam uma razão em si mesmas, tal qual podemos identificar na atualidade. Hoje, a dança, o esporte, a luta, entre outras manifestações do movimento humano são fenômenos que, embora evidentemente ligados ao todo social, à cultura que as abriga, ao mesmo tempo são capazes de produzir suas formas autônomas de existência. No universo da tradição grega, esses fenômenos não eram encontrados de forma autônoma, estavam sempre ligados a outras expressões da vida social, em especial, a religião. Não seria equivocado afirmar que eram, sob certos aspectos, apenas desdobramentos da religião ou, de modo mais abrangente, parte intrínseca do relacionamento do homem grego com o divino.
            Quando Nietzsche remete-se à dança, esse é o panorama de sua referência. Uma dança divina, relação do homem com seus deuses por meio do corpo. Dançar, por essa razão, é transcender a esfera mundana. No caso da interpretação nietzschiana essa transcendência não é a do espírito ou, ao menos, não de um espírito que abandona o corpo tal qual na tradição cristã. O corpo é objeto central na relação com o transcendente nas festas sagradas entre os gregos e a dança é uma das formas de elevar as potências corporais até o nível da harmonia divina.
            Estamos no âmbito, portanto, de uma dança dionisíaca. As festas em homenagem ao deus do vinho tinham como um dos elementos centrais a dança que, em conjunto com a bebedeira eram os elementos centrais do estado de “embriaguez divina” que os gregos almejavam fervorosamente nesses rituais. A música, caracterizada pelo coro ditirâmbico, era a expressão da coletividade que encontrava eco na dança. A dança que Nietzsche nos lembra, portanto, é uma dança coletiva. De fato, na sua tese sobre a derrocada dos valores vitalistas da cultura grega, evidenciadas esteticamente pelo nascimento da tragédia, a destituição do coro ditirâmbico, sendo substituído por um coro ensaiado e em complemento à função do solista é uma forma de normalização da potência criativa e coletiva da estética grega dionisíaca.
            A dança que nos fala Nietzsche, portanto, é uma dança ao mesmo tempo corporal, no sentido material, e transcendente no sentido divino (mas não metafísico). Zarathustra, em suas andanças, encontra povos fracos, ressentidos, assolados pela moral de rebanho que os coloca em papéis de coadjuvantes em suas próprias vidas. Essas pessoas não dançam mais, pois não se permitem mais elevar-se ao divino. As esferas mundanas, da qual faz parte o corpo e a dança, e a esfera divina, transcendental, são fenômenos completamente dissociados na cultura judaico-cristã. Toda forma de aproximação do elemento divino por meio de práticas corporais foi conduzida à categoria do profano. O que Zarathustra busca ensinar aos homens, por essas razões, é que eles devem dançar.
A dança e o outro
            Por fim, resta ainda observar que quando o Zaratustra de Nietzsche conclama os homens a dançar dessa forma, há nessa orientação um combate ao profundo individualismo em que o homem se encarcerou. A essa forma de pensar e agir, na qual o indivíduo elege a si mesmo como “a medida de todas as coisas” 2, Nietzsche chamou de “Princípio de Individuação” (2003, p. 30). O dionisíaco e a dança, como energias coletivas, têm o poder de reconciliar o homem e a natureza, o homem e o outro. Leiamos essa possibilidade apontada por Nietzsche (2003, p. 31):
            Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem.
            A visão de Nietzsche, nesse sentido, é holística. A dança a que ele se refere, portanto, é aquela que serve como fenômeno de integração, de harmonização, sem, contudo, ser pacífica. Sendo dionisíaca, trata-se de uma dança guerreira. Celebra-se a vida e a natureza humana, mas sabe-se que essa natureza é conflituosa e não se escapa de tal tensão. O lado noturno é tão importante quanto o diurno, a dança evoca tanto o sublime quanto o terrível.
            Esse equilíbrio estético foi perdido pela dança romântica, que valorizou apenas o lado dito moralmente nobre do humano e elegeu Apolo, em suas formas, medidas e equilíbrio como o único referencial a ser seguido. No entanto, danças profanas, populares ou ritualísticas trazem sempre à tona o poder dionisíaco novamente, mostrando-nos que, em essência, a dança que Zaratustra nos incita parece ser insistentemente clamada pelo corpo e pela vitalidade.
Considerações finais
            O conceito de dança em Nietzsche não aparece fortuitamente. Tampouco tem uma importância apenas metafórica no sentido de um recurso de linguagem meramente estilístico. O filósofo alemão parece ter escolhido esse fenômeno por suas qualidades intrínsecas de representar o potencial dionisíaco que o homem deve assumir para superar sua condição de fraco, para ir além da moral de rebanho, para atingir o “super-homem”.
            Sua crença no papel da arte como fenômeno educativo e transformador, expressão vitalista por excelência, vislumbra a música e a dança como veículos de uma profunda transvaloração. Ainda que a dança apareça, fundamentalmente, como alegoria, é possível pensar em sua execução material nos moldes das intenções descritas por Nietzsche. Mas, para isso, é preciso que alguns entendimentos, tais como os propostos por esse texto, não deixem que o imaginário atual sobre uma dança vulgarizada ou esquadrinhada tecnicamente acabe por desviar a essência do entendimento expresso por Nietzsche em torno desse conceito.
            A dança, em Nietzsche, é uma expressão da vitalidade, da vontade de poder, da capacidade do homem em agir de modo “ativo” em uma cultura que o quer apenas “reativo” (NIETZSCHE, 2004, p. 63). Essa atividade o coloca como protagonista de sua vida, sem, contudo, estar ensimesmado. A dança é um “sim” à vida, mas só pode ser dançada por quem compartilhe desse “sim”, por aqueles que queiram se embriagar. A dança é, assim, sempre uma homenagem a Dioniso e o deus do vinho é sempre um tributo à vida.
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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